quarta-feira, 14 de julho de 2010

‘Secretárias’ no lugar da juíza

Presença de magistrada era como fantasma nas audiências: funcionárias assumiam o papel dela em audiências em Guapimirim e Inhomirim, na Baixada Fluminense. Irregularidade pode levar à anulação de decisões judiciais

POR ADRIANA CRUZ

Rio - Sua excelência, a secretária! Era sob a batuta de duas funcionárias do Tribunal de Justiça que as audiências de instrução e julgamento aconteciam nos juizados especiais adjuntos Cível e Criminal de Guapimirim e Cível de Inhomirim, em Magé, Baixada Fluminense.

Conhecidas pelos advogados como as ‘secretárias’ da juíza Myriam Therezinha Simen Rangel Cury, elas comandavam as audiências sem a presença da magistrada. As decisões tomadas nessas sessões podem ser anuladas.

Foto: Reprodução

Após receber várias reclamações, dia 1º a Ordem dos Advogados do Brasil no Rio apresentou queixa formal contra a juíza na Corregedoria-Geral da Justiça. Durante duas semanas de junho, O DIA filmou as audiências comandadas pelas funcionárias.

O corregedor-geral, desembargador Antônio José Azevedo Pinto, teve acesso às imagens e abriu investigações: “Já fizemos até inspeção nas comarcas”. Em Inhomirim, Myriam Therezinha foi substituída pela juíza Luciana Mocco, mas continua titular da vara única de Guapimirim.

Fotos: Reprodução

A Corregedoria da Justiça vai investigar administrativamente a atuação da juíza e das secretárias. Elas podem sofrer desde uma advertência até a demissão do cargo.

As imagens flagradas por O DIA mostram o trabalho das ‘secretárias’, a analista judiciária Andrea de Lima Guerra e a técnica de atividade judiciária Tarsilla Carla Calvo Chiti.

A marca registrada de cada rito processual era a cadeira da juíza vazia. Dia 16, no Juizado Especial Adjunto Cível de Guapimirim, Andrea informou que tinha 12 audiências de instrução e julgamento — onde pode ocorrer acordo, serem dados depoimentos e até ser proferida sentença.

Na sala ao lado, Tarsilla fazia as do Juizado Especial Adjunto Criminal. Naquele dia, ela tinha pelo menos 15 audiências.

Na ocasião, funcionários do cartório disseram que a juíza só chegou por volta das 16h.

OAB DE MAGÉ FEZ DENÚNCIA

Tanto Andrea quanto Tarsilla não se apresentam como juízas e enfatizam que são funcionárias. Andrea orienta quem participa das audiências: “Eu não sou a juíza. Mas é como se ela estivesse aqui (...), agora não coloca isso no seu relatório, não”. Dia 22, Myriam Therezinha deveria presidir audiências de instrução e julgamento do Juizado Especial Cível de Inhomirim, mas lá estava Tarsilla. Na pauta, 25 audiências que começaram às 13h30, quando a juíza estava no prédio. O grau de insatisfação com a ausência da magistrada fez com que a OAB de Magé denunciasse o caso à Ouvidoria do órgão, que montou dossiê após visitas às comarcas.

Advogados podem recorrer para anular audiências

As audiências de instrução e julgamento sem a presença da juíza podem ser anuladas. Para isso, os envolvidos no processo precisam entrar com recurso na Justiça. “Isso pode ocorrer só nos casos em que os interessados se sentirem prejudicados”, explicou o corregedor-geral da Justiça, desembargador Antônio José Azevedo Pinto.

Segundo o presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, a anulação pode acontecer em qualquer processo que não tenha sido feito dentro da lei. “Os interessados que se sentirem prejudicados, ou até mesmo o Ministério Público, podem pedir a anulação”, exemplificou.

Na opinião do corregedor-geral da Justiça, o juiz é zelador da lei. “Ele deve cumprir e fazer cumprir. Um juiz não pode agir fora da lei”, enfatizou o magistrado.

OAB acusa juíza de falsidade ideológica

Na representação à Corregedoria da Justiça, a OAB-RJ pedia ainda que fosse encaminhada cópia para o Ministério Público Estadual para apuração do crime de falsidade ideológica, praticado pela magistrada, e usurpação de função pública pelas ‘secretárias’.

Na ata de cada audiência constava que as sessões ocorriam na presença da juíza e que, por ela, as sentenças eram proferidas — o que não ocorria. “O caso é gravíssimo. As audiências não eram feitas dentro da lei”, afirmou presidente da OAB-RJ, Wadih Damous.

Há dois meses, a Ouvidoria Itinerante constatou as irregularidades. “A juíza está fora da lei”, protestou o ouvidor-geral da OAB, Álvaro Quintão.

ENTREVISTA: MYRIAM THEREZINHA SIMEN RANGEL CURY, JUÍZA

SOU EXAGERADA NA MINHA DEDICAÇÃO'

1. Como é o trabalho da senhora nas comarcas de Guapimirim e Inhomirim?

—Focado na produtividade e celeridade. De maio a agosto do ano passado, em Inhomirim, entraram 1.161 novos processos e proferi 1.441 sentenças. Já até sofri ameaças de morte. Tenho paixão pelo meu trabalho.
Acho até que sou exagerada na minha dedicação. Talvez as minhas ideias sejam avançadas.

2. As ‘secretárias’ presidiam audiências de instrução e julgamento. Como explica essa situação?

—Elas não presidiam, elas iam adiantando a confecção das atas de audiência, a parte burocrática. Enquanto isso, vou apreciando pedidos de habeas corpus e tomando outras providências. Assim consigo prestar a jurisdição melhor porque não vou ter que dar a sentença ali na hora de qualquer maneira. Elas não decidem nada. Tudo acontece sob meu crivo. Quem preside as audiências sou eu.

3. Mas nas atas constam que as audiências ocorrem na sua presença e a senhora não estava lá.

—É despacho, não é decisão, embora esteja escrito ali. Quando é tomada alguma decisão é porque eu entrei na sala de audiência e decidi.

4. Dia 16, as audiências começaram às 12h. A senhora estava lá? Quando não está, ocorrem audiências?

—Não lembro. Pode ser que tenha me atrasado. Eventualmente, acontece (se referindo à sua ausência), mas estou em contato telefônico. Não posso parar a prestação jurisdicional por causa do trânsito caótico do Rio.

16 DE JUNHO, FÓRUM DE GUAPIMIRIM

A secretária Andrea de Lima Guerra explica como as audiências ocorrem sem a presença da juíza. Ela pede, ainda, que a repórter, que é também estagiária de Direito, não divulgue a “rotina”.
Andrea: Se tem proposta de acordo, eles fazem e a gente efetua o acordo. Se não há, acontece isso que você está vendo. A parte ré oferece a contestação, a advogada da parte contra se manifesta contra a contestação, caso queira, e dali vai para o juiz fazer a sentença. Isso que é AIJ (audiência de instrução e julgamento). A juíza não sou eu, mas se ela estivesse seria o mesmo procedimento.

Não é o fato de ela não estar aqui que não está rolando nada... É como se ela estivesse. Tanto que você não vai colocar no relatório que foi a secretária que fez. Tem que botar que foi a juíza.
Tarsilla orienta os envolvidos em um processo
Tarsilla: A audiência foi remarcada para essa data aqui: dia 6 de outubro, às 13h40. O senhor tem que comparecer, tá? E a assistente social vai à casa de vocês para fazer o estudo social. E a senhora tem que comparecer nessa data aqui também, ok? Então tá.

DIA 22 DE JUNHO, FÓRUM DE INHOMIRIM

Ao terminar uma das audiências, a advogada cobra a assinatura da juíza e pergunta à secretária se é ela que preside a audiência.

Advogada: A dra. não assina?

Tarsilla: A juíza?

Advogada: É.

Tarsilla: A doutora não assina ata, não...

Advogada: Quem preside a audiência é você?

Tarsilla: Eu assino ata.

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